Em tempo de avanços tecnológicos acelerados e medicina de precisão, um conceito ancestral ressurge com força: o cuidado. Mais do que um jargão médico, o cuidar, no sentido mais pleno da palavra, é o alicerce dos chamados cuidados paliativos — uma abordagem médica que vai além do tratamento da doença e coloca no centro da atenção o ser humano em sua complexidade física, emocional, social e espiritual.
Especialista em Clínica Médica e Cuidados Paliativos, a médica amazonense Lorena Praia defende essa abordagem e prática ainda pouco compreendida da medicina, mas essencial para quem vive com doenças graves. Lorena avalia que os cuidados paliativos são, na verdade, uma tentativa de resgate da essência original da medicina.
“A medicina paliativa é muito antiga, porque é, na verdade, a medicina humanizada. É aquela que se perdeu no tempo com o avanço das tecnologias e a corrida pelos diagnósticos. E agora estamos tentando reencontrá-la”, afirma. Esse reencontro se dá com base em um olhar personalizado e atento ao sofrimento do paciente — um sofrimento que nem sempre é apenas físico.
Cuidar é escutar
A experiência de Lorena ao lado de pacientes oncológicos e em unidades de terapia intensiva revelou uma lacuna. “Faltava o olho no olho, a conversa, o toque, o manejo integral dos sintomas, o olhar para a família, para o luto, para o futuro”, afirma. Foi esse incômodo que a levou a buscar especialização no Hospital Sírio Libanês, de Brasília, referência na área. Desde então, ela tem se tornado uma voz ativa no Amazonas pela consolidação de uma prática médica que prioriza o que realmente importa: a dignidade da vida em qualquer estágio.
O termo “paliativo” deriva do latim palium, que significa manto. Um manto de proteção. Essa é a imagem que norteia sua atuação: “cuidados paliativos são um manto de dignidade sobre a pessoa que sofre, uma tentativa de devolver o protagonismo a quem está doente”, resume Lorena. E, como ela mesma lembra, isso não se limita ao fim da vida.
O mito do “fim”
Durante muito tempo, cuidados paliativos foram erroneamente associados apenas à fase terminal. Um equívoco, segundo Lorena. A Organização Mundial da Saúde cunhou essa ideia em 1994, mas o conceito já evoluiu. “Hoje sabemos que eles são aplicáveis desde o diagnóstico de uma doença grave, mesmo que não seja incurável. Trata-se de oferecer qualidade de vida desde o início.”
Lorena cita exemplos como Alzheimer, doenças cardíacas refratárias, doenças hepáticas crônicas e câncer. “O importante é oferecer ferramentas para o paciente viver o melhor possível em qualquer estágio, e isso inclui reduzir dores físicas, mas também tratar angústias emocionais, sociais e espirituais. É o que chamamos de ‘dor total’”.
Essa “dor total” foi descrita pela enfermeira inglesa Cicely Saunders, pioneira dos cuidados paliativos. Segundo ela, a dor não é apenas o sintoma físico, mas também a soma das perdas, medos, traumas e rupturas que acompanham a doença. E quem cuida, precisa aprender a reconhecer e lidar com cada uma dessas camadas.
Além da medicina paliativa, Lorena também destaca a importância da especialidade em Clínica Médica, muitas vezes confundida com o atendimento generalista. “O clínico médico passa por uma formação mais aprofundada, com vivência em diversas especialidades, o que nos dá um raciocínio clínico mais apurado”, explica.
Essa abordagem é fundamental especialmente para pacientes que circulam entre diferentes profissionais sem obter um diagnóstico preciso. “Às vezes, apenas com a escuta atenta, conseguimos identificar sinais que passaram despercebidos. Isso reduz a frustração do paciente, que sofre por não ter o tratamento adequado”, completa.
Casos que salvam vidas
Lorena lembra com emoção de um episódio que a marcou. “Eu estava na UTI e vi uma paciente entubada há muitos dias. Algo me dizia que havia algo além do diagnóstico original”. Após revisar todos os exames, passou a madrugada pensando. “Foi quando me veio a ideia da plasmaférese. Consegui que o procedimento fosse feito no mesmo dia, e aquela paciente, que todos achavam que não passaria da manhã, está viva até hoje. Isso é cuidado. É parar, olhar com profundidade, acreditar, agir”, acrescentou.
Outros exemplos vêm de sua atuação domiciliar. Pacientes com múltiplos remédios, algumas vezes encontram na desprescrição um alívio. “Cuidar é também saber o que não prescrever”, diz. Um caso chamou atenção: após reduzir a medicação e incluir orientações simples — como exposição ao sol, janelas abertas e interação familiar — a paciente melhorou significativamente. “Às vezes, o excesso de intervenção médica é parte do problema”.
Medicina além da bula
Lorena acredita em uma medicina mais integrada e respeitosa com as culturas tradicionais e os saberes populares. Fã assumida de chás naturais e adepta do yoga, ela afirma ser importante atentar para as práticas indígenas e o conhecimento ancestral. “Não dá pra ignorar o que a sabedoria popular sabe. O problema é que a medicina tradicional, acadêmica, ainda não investe o suficiente para comprovar cientificamente o que muitos já sabem empiricamente”, afirma.
Ela relata o caso de uma paciente com problema hepático proibida de tomar qualquer chá. “Pesquisei artigos científicos para entender quais ervas poderiam ser seguras. Encontrei alternativas, e ela pôde manter seu hábito sem prejuízo à saúde”. Para Lorena, esse é o cerne do cuidado: respeitar o que é importante para o paciente e adaptar o conhecimento médico à realidade de cada um.
Cuidar na Amazônia
A prática de Lorena ganha contornos ainda mais potentes por estar na Amazônia, onde o acesso à saúde é desigual e limitado. “Só porque alguém vive a 20 horas de barco de Manaus, não significa que merece menos cuidado”. Ela tem se aproximado de comunidades indígenas e reconhece ali um saber milenar. Inspirada pela natureza e cultura locais, Lorena escolheu como símbolo de sua marca pessoal a casca da tartaruga — resistente, protetora e profundamente amazônica. “É a imagem perfeita para representar esse cuidado ancestral, resiliente e coletivo que a medicina deveria oferecer”, explica.
Visibilidade, política e futuro
Apesar da importância, os cuidados paliativos ainda engatinham no Brasil. A especialidade foi reconhecida oficialmente apenas recentemente e a presença na rede pública é incipiente. “O Brasil está entre os piores países para morrer, segundo estudos internacionais. Morremos com dor, sem acolhimento, sem dignidade”, lamenta. Lorena aponta como solução a implementação real da Política Nacional de Cuidados Paliativos, lançada em 2023, e a formação de profissionais com esse olhar.
A médica também atua nas redes sociais e busca dar mais visibilidade à área. “Quanto mais cedo o paciente souber que existe esse tipo de abordagem, melhor será sua trajetória. Cuidado não pode ser uma exceção”.
Ela finaliza com um chamado: “O cuidado precisa deixar de ser um luxo ou um privilégio. Ele tem que ser o centro. Em toda consulta, em toda visita, em todo atendimento médico. Porque, no fim, é disso que se trata a medicina: cuidar.”