O bumbá Tira Prosa é o único boi de Manaus, atualmente com 76 anos completados em 13 de maio, que ‘morreu’, e como no auto do boi, voltou à vida, ressuscitado pelo pajé, no caso aqui, pelo apaixonado pelo boi da Boca do Emboca, Ronaldo Matos.
O primeiro registro da brincadeira de boi, em Manaus, foi feito, em 1859, pelo médico e explorador alemão Robert Christian Barthold Avé-Lallemant. Depois disso, somente em 1925 surgem registros em jornais da época citando a ‘correria dos bumbás’, na Cachoeirinha, inclusive com Garantido, Caprichoso e Mina de Ouro. Existe até a história de que o Caprichoso daqui, com curral na Praça 14 de Janeiro, teria sido o precursor do Caprichoso de Parintins.
“Acredito que, mesmo não havendo registros escritos, ao menos até agora não colocados à luz, os bumbás continuaram a existir na cidade desde aquele avistamento feito por Avé-Lallemant”, falou o historiador e folclorista Raimundo Nonato Negrão Torres.
Ainda de acordo com Nonato, os bumbás começam a aparecer documentados a partir de 1946, quando o também historiador e folclorista Mário Ypiranga Monteiro organizou o 1º Concurso de Bois Bumbás, realizado no Bar Balalaika, na rua Leonardo Malcher. Hoje, no local, existe a Drogaria Balalaika. Nos anos seguintes, até a realização do 1º Festival Folclórico de Manaus, em 1957, Mário Ypiranga continuou a organizar o Concurso de Bois Bumbás, sempre com o apoio da prefeitura. O Tira Prosa havia sido criado um ano antes, no bairro de Santa Luzia, e logo passou a figurar entre os grandes bumbás existentes na cidade.
Deu até no JC
“O criador do Tira Prosa foi Francisco Santiago de Oliveira, conhecido como Tutu, junto com outros moradores da Boca do Embora, região que fica entre os bairros de Santa Luzia, Cachoeirinha e Educandos por isso, o Tira Prosa era considerado, inicialmente, como sendo de Constantinópolis, o antigo nome do Educandos”, disse Nonato.
Se hoje alguns poucos bumbás, como Tira Prosa, Corre Campo, Brilhante e Garanhão resistem contra as mudanças dos novos tempos, há algumas décadas esses grupos de brincantes eram tantos, que alguns bairros chegaram a ter dois, três, quatro deles.
“Os mais lembrados, talvez porque reunissem grande quantidade de pessoas, são Corre Campo, da Cachoeirinha; Mina de Ouro, do Boulevard; e Tira Prosa; mas tinha o Caprichoso, da Praça 14; o Garantido, da Cachoeirinha; o Veludinho, do Educandos; Campineiro, Vencedor, Mineirinho, Canário, Pai do Campo, Teimoso, Dois de Ouro, Malhadinho, Curinga, apenas para citar alguns”, listou.
E onde há muita competição, logo surgem as rivalidades. Com o tempo, bumbás de um bairro não eram bem vindos no bairro de outro e, quando insistiam em brincar por ruas proibidas, começavam as brigas, nas noites escuras de Manaus, sob as lamparinas levadas na frente, por alguns brincantes.
“Um embate famoso aconteceu entre o Tira Prosa e o Veludinho. Um brincante deste boi, apelidado de ‘Perna de X’ foi excluído do grupo. Com raiva, passou a brincar no Tira Prosa e quando os dois grupos se encontraram numa noite de junho de 1947, ‘Perna de X’ começou a puxar versos ofensivos contra o antigo grupo. Nem demorou para começar a briga, publicada no Jornal do Commercio de 26 de junho de 1947, sob o título de ‘Touradas de bois bumbás’. Mais de 20 ficaram feridos”, revelou Nonato.
Medo da Catirina
Ronaldo Matos nasceu na Boca do Emboca há 50 anos, e todo mês de junho era a mesma coisa, fogueiras, comidas da época, quadrilhas e o batuque dos bumbás.
“Desde muito criança eu costumava ficar deitado no chão de madeira, da minha casa, também de madeira, ouvindo a vibração dos batuques dos bois que passavam pela Boca do Embora, indo para o Educandos, para a Cachoeirinha, ou aqui para o Emboca e aquele som se tornou muito familiar para os meus ouvidos a ponto de eu conseguir identificar qual boi se aproximava. Cada um tinha um batuque diferente”, recordou Ronaldo.
Apesar de ser uma brincadeira, os bumbás tinham personagens que assustavam as crianças, principalmente o Cazumbá, com sua roupa espalhafatosa e máscara amedrontadora.
“E ainda tinha o Pai Francisco e a Mãe Catirina. Ele nem tanto, mas a Mãe Catirina, um homem vestido de mulher, corria atrás dos moleques, que demonstrassem medo ‘dela’. Era uma diversão pra quem via, mas para os moleques que não sabiam, era um terror”, riu.
A paixão de Ronaldo pelo Tira Prosa começou quando ele viu a paixão que a comunidade da Boca do Emboca nutria pelo bumbá.
“Quando ele chegava aqui no bairro, vindo de suas apresentações pela cidade, todo mundo ia atrás e na frente dele, inclusive acompanhando o batuque batendo em frigideiras e pratos domésticos, tal era a vontade de fazer parte da festa”, contou.
Os instrumentos eram os mais diversos, matracas, rabecas, bandolim, caixola (uma espécie de pandeiro quadrado) e até o ‘espanta cão’, que pelo nome, devia fazer um som bem forte.
Tradição nas ruas
Ronaldo cresceu querendo brincar no Tira Prosa, mas a mãe dele não deixava. Quando estava com onze anos começou a frequentar o barracão do bumbá e aprender a fazer fantasias com o artista plástico José Luiz dos Reis, e continuou até os 13.
“Quando eu estava com 14 anos, em 1985, ela me liberou para eu ir brincar e não parei mais até 2004, quando o dono do boi encerrou a brincadeira. Em 2013 ele o vendeu para o Renê e, em 2014, o comprei. Desde então o tenho mantido, agora transformado em associação”, disse.
Ronaldo lamenta os bois de Manaus, a partir de 2000, terem tentado se igualar aos bumbás de Parintins.
“Foi um erro. Eles passaram a ser os ‘primos pobres’ de Garantido e Caprichoso. Quando me tornei dono do Tira Prosa, mantive a brincadeira exatamente como ela sempre foi. Muita gente me criticou, inclusive brincantes, dizendo que eu deveria ‘parintinar’. Para mim aquilo foi uma agressão às tradições do boi de rua e à memória de nossos avós que brincaram nesses bois”, lamentou.
Ronaldo garante que, até hoje o batuque do Tira Prosa é o mesmo que ele ouvia quando criança, inclusive ele próprio confecciona os tambores utilizados pelos percussionistas.
O bumbá se apresenta no Festival Folclórico de Manaus, mas o interesse maior de Ronaldo é promover a brincadeira pelas ruas do bairro, o que só parou, em 2020 e 2021, por conta da pandemia.
“Já nos apresentamos no Teatro Amazonas, no Tribunal de Justiça e, em junho do ano passado, o padre da igreja de Santa Luzia benzeu o Tira Prosa numa festa que fizemos na frente da igreja. Ano que vem pode ter certeza que voltaremos a percorrer as ruas da Boca do Emboca, como sempre fizemos”, finalizou.
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