Anderson F. Fonseca. Professor de Direito Constitucional. Advogado. Especialista em Comércio Exterior e ZFM.
IG: @anderson.f.fonseca
Em 1603 após James I assumir o trono da Inglaterra, sucedendo Elizabeth I, foi encenada a obra de William Shakespeare (1564-1616) Medida por Medida, comemorando-se portanto no presente 420 anos desta peça de cinco atos que retrata dentre outros os meandros do poder, abordando de maneira genial questões bem humanas como vida, morte, corrupção e os eternos dilemas éticos e morais da vida pública e privada.
Segundo estudiosos das obras do bardo, nesta peça sobressai o tema da isonomia e da imparcialidade da justiça, bem como o abuso de poder daqueles que, mascarando conduta ilibada, cometem crimes piores daqueles que deveriam combater.
Sem nenhum spoiler o dilema moral centra-se no fato da celeridade com que Ângelo, cidadão idôneo de Viena, substituto do Duque Vicêncio, ressucita leis punitivas para a luxúria e condena Cláudio, um jovem que engravidara sua amada fora do matrimônio, e posteriormente utiliza-se desta condenação para obter favores sexuais de Isabela, noviça e irmã de Cláudio a fim de garantir-lhe a liberdade.
Mesma lei, medidas diferentes. Para satisfazer sua lascivia com Isabela, celeridade e as brechas legais para alcançar seu objetivo, para Cláudio que amarga na prisão, rigores legais do devido processo e expedientes excusos para agravar sua situação a fim de persuadir sua irmã Isabela a ceder a suas exigências. Após este prelúdio, abrem-se as cortinas.
Primeiro ato. Brasília (DF) em 11 de janeiro de 2023, conhecido advogado criminalista, cotado a Ministro da Suprema Corte, aproveita um momento antes de embarcar em seu voo para São Paulo e, como qualquer um de nós, após refeição dirige-se ao lavatório masculino para escovar os dentes. Enquanto realiza sua higiene bucal em uma das pias do lavatório eis que aparece um homem, sem nome ou identificação, e começa a xingá-lo, profere impropérios acerca de sua conduta como patrono do agora Chefe do Executivo, eis que fora seu Advogado durante notória operação jurídico-policial. Nobre Causídico não perde a fleuma, calmamente finaliza seu escovar de dentes, sai do lavatório e reporta o ocorrido a segurança do aeroporto.
Narrador. Não fosse o fato do dito homem sem nome ter repartido o ocorrido em vídeo gravado por si e amplamente divulgado em redes sociais, talvez nunca saberíamos deste entrevero.
Segundo ato. Brasília (DF) em 13 de janeiro de 2023, dois dias após os eventos do primeiro ato, em Sessão extraordinária, o Conselho Nacional a que pertence dito jurisconsulto decide por aclamação promover ato de desagravo ao nobre colega, ameaçado e agredido verbalmente no aeroporto de Brasília, marcando-se a data de 06 de fevereiro, primeira reunião ordinária do Pleno neste ano, porquanto “não há como tolerar agressões a colegas pelo simples ato do exercício da advocacia”.
Em 06 de fevereiro de 2023, menos de um mês do ocorrido, em Sessão do Conselho Pleno ocorre o Ato de Desagravo ao jurista, em meio a brados de resistência contra atos semelhantes, vê-se “aprovado por aclamação, o presente desagravo público transmite a mensagem de que a Ordem (…) não tolerará ameaças nem discursos violentos, os quais violam frontalmente a cidadania e o Estado Democrático de Direito.”
Interlúdio. Com a missão cumprida e o abalo sofrido pelo causídico paulista e (ao que tudo indica) futuro ministro do Supremo no evento ocorrido quando de sua higiene bucal no lavatório do aeroporto, passa narrativa para lugar e tempos distantes, mudam-se os atores e a cena, volta-se no tempo, agora em pleno Amazonas na folclórica cidade de Parintins.
Terceiro ato. Parintins (AM), em um dia de fevereiro de 2022, praticamente 1 ano antes dos eventos até aqui narrados, uma operadora do Direito, mulher, advogada, no exercício da profissão, dirige-se a representação da edilidade local para apresentar um requerimento de seu constituinte, qual não é a sua surpresa ao ser física e diretamente proibida não somente de protocolar o dito requerimento como de adentrar ao recinto de reunião dos nobres edis.
Quarto ato. Parintins (AM), face a violência contra si praticada, solicita a causídica o auxílio da representação local dos advocatus , esta imediatamente responde na pessoa da própria Presidente, mulher, advogada, no exercício não somente da advocacia mas também da alta honra da representação de classe. Ao chegar a edilidade melhor sorte não a favorece, ademais agora ambas são por determinação de seu Presidente impedidas e violentamente retiradas da câmara de edis. Todo o ocorrido é comunicado incontinenti, de imediato, no mesmo dia, quiçá horas depois do ocorrido a representação Estadual da Guilda de classe, recebida diretamente por seu representante em chefe.
Quinto ato. Manaus (AM), prerrogativas, diz o representante estadual da Ordem, são muito importantes e precisam ser defendidas, como também o são os direitos das mulheres de não sofrerem violência, sobretudo no legítimo exercício do mister profissional, agravando-se a isto o fato de uma delas ser também representante do Conselho. O Condado ergue-se em polvorosa, finalmente atos de violência tais serão combatidos de maneira inclusiva e plural, contudo, a eloquência dos palavras cala diante da bruma do tempo, por místicas e misteriosas razões, a justa e esperada reprimenda põe-se a adormecer, completa-se uma (01) volta em torno do Sol e um pouco mais quando enfim, distantes os fatos e os perpetradores, eis que não mais a edilidade se vê sob o comando de quem usou de violento abuso contra as duas advogadas, finalmente com pompa e circunstância, dirigem-se aquela aldeia regente e sua delegação a promover entusiasmado desagravo, flâmulas e todas a sorte de brados são ouvidos pelas ruas, os locais não compreendem o que passa, até que um ousando perguntar ouve: “Medida por medida, a justiça foi servida”.
Poslúdio. Nada mais atual e jurídico do que Sheakespeare ao explorar o elo do comportamento humano e suas consequências morais e sociais, em razão do mesmo fato medidas diferentes, a desproporcionalidade e indignação seletiva, por vezes mantendo uma sociedade ou classe a mercê de bons grados para aplicação da lei.
Em sua peça o bardo deixa claro o conceito jurídico: a lei deve valer para todos, esse discurso no entanto difere ao ver-se a quem se dirige, indicando uma possibilidade de aplicação desigual, favorecendo os mais afortunados, aqueles com amigos influentes, noutro lustro, demonstra que errar no aspecto temporal também pode levar a realização de injustiças, seja pela impunidade que a demora na aplicação da lei pode gerar, seja pelo erro que a pressa e açodamento na verificação de detalhes pode causar.
Geralmente pensamos que as injustiças só afetam as pessoas nela envolvidas, não é o que ocorre, qualquer acomodação especial feita em prol ou em detrimento de qualquer um constitui uma predisposição contra todos. Eis a palavra do Duque:
“A clemência da lei nos grita de maneira mais ruidosa / pela própria boca do culpado/ Um Ângelo por um Cláudio, a morte pela morte! / Rapidez em troca de rapidez, lentidão por lentidão / Justiça por justiça, e sempre medida por medida.”
Nada mais atual.