A ofensiva tarifária de Donald Trump imposta ao Brasil surpreendeu pela forma como foi recebida em território nacional. A arma geoeconômica preferencial do presidente norte-americano — as tarifas comerciais —, geralmente voltada a adversários estratégicos como China e União Europeia, agora mirava um parceiro tradicional no hemisfério, o Brasil.
As justificativas econômicas para a imposição de tarifas de 50% sobre produtos brasileiros soam, à primeira vista, confusas, erráticas e contraditórias. Afinal, a balança comercial Brasil–Estados Unidos tem se mostrado francamente favorável aos norte-americanos. Dados recentes da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) e do US Census Bureau revelam que, enquanto as exportações brasileiras para os EUA somaram aproximadamente US$ 36 bilhões, as importações vindas dos Estados Unidos atingiram cerca de US$ 43 bilhões. O resultado: um déficit de US$ 7 bilhões para o Brasil e um superávit para Washington.
Trocando em miúdos, os Estados Unidos vendem mais ao Brasil do que compram — o que, à luz de uma lógica meramente comercial, tornaria injustificável qualquer retaliação tarifária. Sendo assim, se os fundamentos econômicos não sustentam a medida, quais seriam, então, as possíveis causas da ofensiva trumpista?
Aponto três possíveis fontes de tensão: a participação do Brasil na construção da agenda do BRICS+, a ascensão da China na América do Sul e o alinhamento ideológico do ex-presidente Jair Bolsonaro com Donald Trump.
O engajamento do Brasil na ampliação e consolidação do BRICS+ tem sido percebido, por setores estratégicos dos EUA, como uma afronta à ordem internacional sob hegemonia ocidental. Durante o governo Trump, a política externa norte-americana assumiu um caráter cada vez mais unilateral e avesso a fóruns multilaterais — sobretudo aqueles que ameaçassem seu domínio global em um mundo já marcado pelo declínio da unipolaridade dos EUA.
Nesse contexto, a aproximação do Brasil com potências como Rússia e China no âmbito do BRICS+ acirrou a desconfiança da superpotência. Para Washington, o bloco pode representar uma tentativa de remodelar a governança internacional à margem dos interesses norte-americanos. A imposição tarifária, nesse caso, teria um caráter punitivo: um gesto de pressão para que o Brasil reavaliasse suas alianças diplomáticas e estratégicas ou, ao menos, limitasse seu envolvimento com atores percebidos como rivais geopolíticos dos EUA.
Outro fator decisivo é o avanço da China sobre a América Latina — e especialmente sobre o Brasil, seu principal parceiro na região. Há mais de quinze anos, a China ocupa o posto de maior destino das exportações brasileiras, respondendo por mais de 30% da nossa pauta comercial. Esse protagonismo crescente vai muito além do comércio: inclui investimentos maciços em infraestrutura, projetos ligados à Nova Rota da Seda e intensificação das relações tecnológicas.
Do ponto de vista de Washington, essa presença chinesa em seu “quintal estratégico” representa uma ameaça direta à sua zona de influência hemisférica. Mesmo com um governo brasileiro ideologicamente afinado a Trump, como foi o de Jair Bolsonaro, as interdependências estruturais da economia internacional — e a centralidade da China na balança comercial brasileira — serviram de gatilho para uma possível reação punitiva. Nesse cálculo estratégico, submeter o Brasil — considerado um key country, ou país-chave, segundo a doutrina de Henry Kissinger — significaria pressionar toda a região sul-americana em cadeia.
Por fim, o fator ideológico também é relevante. Durante sua presidência, Jair Bolsonaro rompeu com a tradição diplomática brasileira, historicamente guiada por princípios de autonomia, universalismo e multilateralismo, para alinhar-se a Donald Trump — tanto em gestos simbólicos quanto em pautas concretas de política externa.
Contudo, esse alinhamento não se traduziu em ganhos concretos para o Brasil. Após deixar a presidência, Bolsonaro tornou-se um dos mais ativos aliados do movimento MAGA (Make America Great Again), e seus vínculos com Trump continuaram a ser percebidos como politicamente relevantes — inclusive na leitura das instituições norte-americanas sobre o cenário interno brasileiro. As reiteradas críticas de Trump a membros do Supremo Tribunal Federal (STF), instância responsável por julgar processos contra o ex-presidente brasileiro, também alimentam a hipótese de que ações econômicas punitivas possam ter servido de instrumento indireto de pressão política no curso da ação legal da Corte.
A imposição de tarifas pelos Estados Unidos ao Brasil, em um contexto de superávit comercial favorável a Washington, não pode ser compreendida apenas à luz da racionalidade econômica. Trata-se de uma ação que revela, portanto, os contornos geopolíticos de um mundo em transição, na qual os Estados Unidos recorrem a instrumentos geoeconômicos de coerção para manter sua influência diante da ascensão de novos polos de poder na ordem multipolar emergente.
*é cientista político