Voz amazonense na Flip

Em: 31 de julho de 2025
Escritora Verenilde Pereira ocupará uma mesa junto com Astrid Roemer, renomada poeta e romancista do Suriname.

Começou nessa quarta-feira, 30, e segue até o dia 3 de agosto, domingo, a 23ª edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), no Rio de Janeiro, um dos maiores eventos literários do país, e tem amazonense em local de destaque no evento, a jornalista e escritora Verenilde Pereira, nome consagrado no meio literário brasileiro e ainda pouco conhecido no Amazonas, e que por sinal trabalhou no Jornal do Commercio, a quem concedeu a entrevista a seguir.   

 

Jornal do Commercio: Como foi para você receber o convite para participar em uma das principais mesas da FLIP ao lado da escritora Astrid Roemer?

Verenilde Pereira: Recebi o convite com muita surpresa pois jamais imaginei estar algum dia ao lado dela, uma das mais reconhecidas e premiadas escritoras caribenhas do mundo contemporâneo. Estar ao lado de Astrid significa um reconhecimento do meu trabalho e demonstra a potência da literatura amazônica que às vezes é percebida, rotulada ou anulada devido ao perigoso viés etnocêntrico.

 

JC: Como se deu essa escolha?

VP: Não sei exatamente os critérios da escolha, mas há um diálogo muito intenso entre as nossas obras, pois tratam de questões como colonialidade, as complexidades sutis do universo feminino frente às oligarquias, aos autoritarismos das instituições, as tentativas constantes do não aniquilamento de alguns sujeitos, que a literatura de alguma maneira resgata ou tenta fazer isso. Possivelmente a escolha ocorreu, dentre outras possibilidades, devido ao que disse a mediadora Adriana Ferreira: porque eu e Astrid Roemer partimos de “pontos de vista diferentes para tratar do que é considerado loucura – ou o que pode enlouquecer – uma mulher, tendo como cenário Manaus, na Amazônia, e cidades do Suriname”.

 

JC: Por que você saiu de Manaus?

VP: Saí de Manaus em 1986 embora a região seja consistente em mim, em minha vida, pois é minha origem sempre enraizada. Deixei de morar na cidade em consequência de questões fundamentalmente político/ideológicas que envolviam assuntos relacionados ao meio ambiente, invasão de mineradoras e garimpos em terras indígenas, as destruições provocadas pelas madeireiras em um momento de muita dificuldade para reportar tais questões. Obviamente que uma prisão em pleno rio Negro, naquela época, representava riscos fatais dos quais eu me preservei por um triz. Mas eu continuo mais amazônica do que nunca, vou à região anualmente, enfim, caminho com minhas raízes sólidas que não me paralisam, pelo contrário, me impulsionam.

 

JC: As mulheres estão tendo mais voz na literatura ou já tinham espaço?

VP: Se as mulheres já carregam inúmeras camadas de opressão e segregação seculares em tantos outros espaços, não seria a literatura, se pensada como instituição, que abriria facilmente as portas para esse ingresso. Principalmente se além de mulheres, pertencerem a determinados grupos diferenciados, com seus atravessamentos étnicos, econômicos, de classe social. Lembro de Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira escritora negra, autora de ‘Úrsula’, em 1859, que apenas em 1962 teve a visibilidade merecida, tendo morrido pobre e cega. Maria Firmina tratou sobre questões da escravatura e do patriarcado, mas foi anulada por um século. Em consequência da movimentação política das mulheres, o espaço para visibilizar a produção literária feminina foi obrigatoriamente alargado. Mas estamos muito distantes de uma equidade. A pesquisadora Germana Pereira de Souza em seu livro ‘Carolina Maria de Jesus – o estranho diário de uma escritora vira lata’, ressalta, por exemplo, as manobras da escritora no “complicado mundo editorial, artístico e midiático”. Sem falar no que Virginia Woolf sinalizou em ‘Um teto todo seu’, quando coloca a tradição literária feminina sob domínio do patriarcado.

 

JC: Como é o dia a dia literário da escritora Verenilde Pereira?

VP: Lembrando Virginia Woolf eu tenho um silêncio “todo meu”, tenho a solidão necessária, nada tormentosa, pesada, triste ou dolorida, para contactar e receber personagens, ouvi-los, às vezes resgatá-los sem barulho para que possam surgir sem medo. Claro que convivo com gente de ‘carne e osso’, tenho ao meu redor muito verde, mas o silêncio é indispensável. Como acredito que a literatura é o discurso que suporta o mundo, há de se manter o silêncio necessário para dignificar a literatura e não deteriorá-lo. Vivo com muita simplicidade, simplicidade extrema, há pessoas que até se surpreendem com isso. E, apesar disso, não perco de vista grande parte do mundo.

 

JC: O que você lembra de seus tempos de Jornal do Commércio?

VP: Lembro de muitos detalhes, mas, sobretudo, das conversas com meu editor chefe, Narciso Lobo, já falecido. Ele permitia a publicação de muitos de meus textos mesmo sem que tivessem sido pautados, mesmo que eu mesma bancasse os custos, o que era uma atitude ousada e libertária na época. Ele mesmo adjetivava os textos que eu produzia como minhas ‘denúncias’. Evidentemente já eram prenúncios literários, mas, posteriormente, isso teve um preço muito alto. Contudo, ‘Um rio sem fim’ prossegue apesar das secas, dos recuos, das tentativas de paralisar seus percursos, das poluições…

 

Evaldo Ferreira

é repórter do Jornal do Commercio
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