Quem assistiu à posse do presidente Donald Trump no dia 20 de janeiro pode não ter reparado um simbolismo geopolítico em seu pano de fundo. Logo atrás das cadeiras destinas à sua família e ao vice-presidente eleito, estavam sentados os grandes empresários de grandes plataformas digitais, dentre eles: Jeff Bezos, da Amazon; Mark Zuckerberg, da Meta; Elon Musk, do “X”; Sergey Brin, da Alphabet; Sam Altman, da OpenAI; e Tim Cook, da Apple. Trata-se de uma parcela da elite norte-americana que detém o monopólio de boa parte das ferramentas informacionais que, cada vez mais, fazem parte do dia a dia de tomo o mundo.
O fato de ter colocado os membros da “oligarquia tech” ao seu lado, certamente expressa um recado de Trump para o mundo: em seu governo, os EUA usarão cada vez mais as “techs” como arma geopolítica para cumprir a sua promessa de “tornar a América grande novamente”.
Duas medidas tomadas imediatamente por Trump parecem corroborar essa ideia: a perfuração “alucinada” de poços de petróleo e o investimento de cerca de US$ 500 bilhões em Inteligência Artificial. Qual a lógica disso? Conforme o JP Morgan, o investimento em datacenters, base do desenvolvimento da IA, deve gerar de 10 a 20 pontos no crescimento do PIB dos EUA em 2025 e 2026. Para se ter uma noção sobre a importância desse tema, é utilizado o consumo de energia como fator de comparação na indústria de datacenters. Os dados do começo de 2024 demonstram que os EUA consomem 176 TWh para sustentar seus datacenters, por onde trafega um terço dos dados de internet do mundo. Esse valor representa um terço do consumo anual de energia do Brasil. Dessa forma, a indústria de energia e de tecnologia da informação estão umbilicalmente conectadas para os EUA se manterem na vanguarda tecnológica do mundo.
Também ao fundo, ao seu lado esquerdo, figuravam – atônitos – ex-presidentes, como Obama, Clinton e o próprio Biden. A cada declaração de Trump os ex-presidentes esboçavam um sorriso amarelo, como quem não entendia o que estava acontecendo ou, o que parece ser mais provável, como testemunha do fim de uma ordem mundial baseada na defesa da democracia liberal. Trump estaria lançando ali a “pá de cal” sobre uma estrutura hegemônica que fizeram os EUA se tornarem, após a Segunda Guerra Mundial, a potência “número um”. Mas como explicar isso, se a promessa de Trump é exatamente tomar de volta o lugar que, na sua opinião, os EUA estariam perdendo?
Nossa impressão é que, nos cálculos de Trump, aquela estrutura que sustentava a hegemonia norte-americana e que levou à globalização que conhecemos hoje “deu água”; “azedou”, e já não atende mais aos interesses norte-americanos. Pelo contrário, tem sido usada, na sua visão, por seus concorrentes, especialmente pela China.
Mas qual seria a estratégia de Trump para substituir aquele modelo de globalização? É aí que podem estar entrando as big techs como armas dessa nova estratégia norte-americana. Em termos simplificados, a estratégia de Trump é economizar no tabuleiro internacional, evitando maiores envolvimentos em conflitos distantes de seu entorno, para fortalecer a capacidade de produção nacional. Em termos dos fluxos tangíveis, como comércio e migração, Trump se mostra um protecionista, “construtor de muros”. Entretanto, quando se fala de fluxos informacionais, cujo conteúdo (big data) é dominado por uma “oligarquia tech” muito próxima, ele se mostra um “liberticida”, para quem a liberdade no espaço digital não deveria ter limites.
De fato, o controle dos fluxos intangíveis (cibernéticos e informacionais) pode conter algumas vantagens estratégicas do ponto de vista geopolítico. A primeira, de ordem econômica, diz respeito à demanda assegurada: cada vez mais o mundo se torna dependente desse mercado. A conveniência concedida por seus aplicativos tem gerado novas necessidades e maior dependência para indivíduos e empresas. Além disso, nesse mercado dominado por grandes empresas privadas, observa-se uma tendência de monopólio em setores estratégicos, ligados a infraestruturas digitais e ao controle de dados informacionais. O investimento em satélites, por exemplo, pode vir a “libertar”, no futuro, a internet de suas “amarras” tangíveis: os cabos submarinos, que cortam todo o planeta.
A segunda vantagem, considerando a ideia de liberdade total nas redes sociais, diz respeito ao uso da informação (ou desinformação) como arma contra governos autoritários e “iliberais”, como a China, seu principal concorrente. Ao propagar essa ‘tal’ liberdade, o objetivo é claro, permitir que as big techs americanas continuem controlando o acesso a informação, ao mesmo tempo que coletam dados do mundo todo. Nesse ponto, há um conflito entre o que os EUA querem de liberdade tecnológica junto aos outros países, mas que negam ao mundo, como no caso do TikTok.
O discurso de posse do presidente Trump parece revelar de fato um novo mundo, marcado claramente pela disputa hegemônica e por posturas imperialistas. Nesse novo contexto, o domínio sobre tecnologias disruptivas e emergentes parece ditar o jogo. Não à toa, os maiores investimentos anunciados são nas áreas de IA e energia. O que estamos assistindo é o estabelecimento de uma frente de competição geopolítica, na qual o controle dos meios informacionais e cibernéticos gera capacidades nacionais diante de seus adversários, mas para isso precisa-se de datacenters e de energia (mesmo que do petróleo) e datacenters.
Autores:
Oscar Medeiros Filho é coronel da reserva do Exército, doutor em Ciência Política pela USP e professor da Escola Superior de Defesa.
Thadeu Luiz Crespo Alves Negrão é coronel da reserva do Exército, doutorando em Relações Internacionais pela UNB e professor da Escola Superior de Defesa.