Por Ruy Marcelo em parceria com Amanda Luz
Em meio ao levantamento de tantos casos de aparente distorção no emprego de emendas parlamentares, consoante divulgação no âmbito do STF (com bloqueio cautelar de R$ 4,2 bi em emendas de comissões por suspeita de irregularidades), os Órgãos de Controle – tanto na esfera Federal, quanto nas esferas Municipal e Estadual – precisam encontrar a resposta definitiva e satisfatória para sanear essa questão, sob pena de se colocar em xeque o próprio dever constitucional de probidade e eficiência da gestão financeira estatal.
A solução passa por primeiro entender que o regime das emendas parlamentares deve ser encartado em um sistema maior de integridade e de governança. Portanto, achar a medida de adequação dele aos princípios constitucionais e ao direito financeiro é a única resposta democrática, viável e juridicamente capaz de refrear as fragilidades e os riscos de desperdício e de irregularidades na gestão de recursos públicos por essa via.
É preciso submeter as emendas ao crivo da impessoalidade, sem exceções que esbarrem na expropriação do patrimônio público. Hoje, em muitos casos, os parlamentares definem as ONGs beneficiárias das emendas sem seleção pública e com total ausência de motivação que explique de forma objetiva a inexigibilidade de licitação. Isso se deve, em parte, à interpretação tosca do art. 29 da Lei 13019/2014 (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil – MROSC), que, em sua literalidade, dispensa o chamamento público de instituições do terceiro setor, no caso de custeio de parcerias mediante emendas parlamentares com beneficiários apontados nominalmente (leia-se: não há um critério claro de escolha, o que gera desconfiança de apadrinhamentos). Fica fácil de perceber que o fato favorece escolhas parciais, não republicanas, eleitoreiras e sem o devido preparo para destinação de dinheiro público.
Ocorre que o tal dispositivo legal – o art. 29 do MROSC – não pode ser aplicado de modo a subverter a ordem jurídica: se duas ou mais ONGs atuam em determinado seguimento social, não é nem lícito nem moral – tampouco econômico, que um parlamentar privilegie uma das instituições, em detrimento de todas as demais.
Além da impessoalidade, é imperativo assegurar a aplicação do princípio da transparência, de forma ampla e como regra, em conformidade com a Lei de Acesso à Informação (LAI). Poucos garantem a publicidade na destinação dos recursos. A auditoria feita recentemente pela CGU, por requisição do STF, apontou que, no período de 2020 a 2024, apenas 15% das ONG cumpriram os requisitos e normas de transparência. Nessa moldura, torna-se inadiável o fortalecimento dos sistemas e processos de compliance (controle interno preventivo de conformidade às leis) alinhados ao princípio de governo digital e transparência pública.
A obscuridade ainda paira sobre diversos pontos cruciais. A título de exemplificação, citemos algumas das perguntas que continuam silenciadas: como é realizada essa lista das emendas? E qual é a motivação do rito interno dessas escolhas? Há atuação de lobistas? Qual a relação entre cada emenda e a correlata ação ou programa estatal estruturante constante do Plano Plurianual – PPA?
Disso resulta uma certeza: as emendas devem passar pelos crivos do planejamento público e do princípio do orçamento-programa. Não há outra forma de evitar a inversão de prioridades, o improviso e o desperdício. A história recente nos deu a oportunidade de encarar a máxima importância de debater as escolhas financeiras do Estado durante a pandemia.
Portanto, é patente que as emendas parlamentares não podem tornar o orçamento uma coxa de retalhos. Ora, se se exigem, do Chefe do Executivo, estudos, método e estratégia na formulação da proposta orçamentária, a fim de que se faça de modo mais eficaz possível a repartição dos recursos públicos, em conformidade com a Constituição e o PPA/LDO, não há sentido em se tolerar que as emendas sejam sem qualquer estudo técnico preliminar. Tampouco que se validem argumentos que se sustentam em força política do membro do Legislativo, apenas. Sob esse prisma, as emendas podem acarretar sério retrocesso da gestão financeira brasileira, fazendo-a voltar para o modelo tradicional e ultrapassado, focado na requisição de despesa e totalmente desconectado do resultado efetivo: o impacto na vida das pessoas, principalmente daquelas que encontram em situação de vulnerabilidade.
Porque somente quando se entende o que é principal é possível avançar. Assim, o orçamento público precisa se fundar em um pensar macro e programático, em vez de demandas picotadas e menores de grupos políticos – como têm acontecido na prática dessas destinações realizadas diretamente pelo Poder Legislativo, nas quais custear uma ambulância pode ser mais importante do que pensar no financiamento do hospital para tratar o doente. Investimentos paliativos têm sua importância e devem ser utilizados quando forem de extrema necessidade, mas não podem se tornar a regra, diferentemente da motivação de escolha de uma política mais vantajosa em relação à outra.
Outra inquietação é quanto ao controle do beneficiário final dos recursos, isto é, quanto ao cidadão atendido. Embora exista previsão legal para o compartilhamento de banco de dados entre os agentes públicos envolvidos na execução e controle da política pública, na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), nem sempre esses dados chegam aos órgãos de controle com a devida qualidade, deixando de trazer respostas que permitam a avaliação do resultado alcançado, por exemplo, quanto à vulnerabilidade coletiva solucionada. Enquanto o Estado brasileiro ainda engatinha no processo de um governo digital, a galopes de altíssima velocidade cresce o volume de emendas impositivas, engessando o planejamento orçamentário.
Todavia, o STF tem prestado relevante contribuição para superar essas deficiências no desempenho legítimo de seu papel de guardião constitucional. E sua atuação deve ganhar força e capilaridade com a atuação paralela do sistema Tribunais de Contas. No julgamento das ADPFs 850, 851, 854 e 1014, os magistrados consideraram “inconstitucional o chamado ‘orçamento secreto’, que orçamentava emendas com base em lacônicos e obscuros ofícios parlamentares”; determinaram “auditoria pela CGU”; impuseram “os requisitos de eficiência, transparência e da rastreabilidade às emendas pix (até então de transferência direta, desvinculada de postulação de projeto) nas ADI 7688 e 7697”; bem como promoveram “consenso sobre a reformulação do portal de transparência, para uma informação mais exata sobre as emendas e sua formulação, inclusive com identificação de autoria e de beneficiário final”.
Mas nem tudo é negativo quando se fala dos outros Poderes. Também existem bons exemplos no Legislativo. Parlamentares que se empenham em moralizar e qualificar os gastos via emendas. Nesse sentido, merece citação a iniciativa da deputada Federal de São Paulo, Tabata Amaral, que lançou critérios transparentes e impessoais, via editais, para a escolha de propostas e organizações sociais a serem contempladas por emendas parlamentares.
De autoria do deputado Rubens Pereira Júnior (PT/MA), temos hoje a nova Lei Complementar 210/2024, com alguns avanços significativos para virar, em parte, a página no Congresso Nacional. A lei determina, dentre outros assuntos: a destinação de recursos a projetos e ações estruturantes, no caso de emendas de bancada estadual; o rito para indicações de emendas por comissões permanentes; e motivos impeditivos de execução de emendas.
Em tempo, sobre a questão que dá o título a esta reflexão, reforça-se que o direito constitucional há de ser invocado. É inafastável a avaliação de um novo regime de responsabilidade solidária do parlamentar pelos eventuais abusos cometidos com base nos termos em que se deram a emenda de sua autoria, inclusive prevendo a aplicação da pena da inelegibilidade, no caso de reprovação da prestação de contas pelo Tribunal de Contas. Mas essa é uma construção jurídica a ser aprofundada em outras linhas…
Por Ruy Marcelo em parceria com Amanda Luz